sexta-feira, 10 de abril de 2020

Posso ajudar?


Foi em Lourenço Marques

A Livraria Académica fica “logo ali”, ao virar a esquina do Prédio Rubi, no prédio em frente.
Perdi o conto às visitas que fiz ao estabelecimento, na esperança de ser atendido pela jovem Mariana dos cabelos compridos…
A estratégia era simples: ”estava sempre necessitado” (?) de coisas simples, como lápis, borrachas, papel cavalinho, aguarelas. Quando “esgotava” os artigos da minha imaginação  continuava cliente, usando outra alternativa: entrava na loja e dirigia-me  às estantes onde repousavam obras  de autores portugueses.
Habituada à minha presença solitária. ela aproximava-se com meio sorriso condescendente, como quem diz de si para si:
-“A  mim  não me enganas tu”!...
Mais perto, atenciosa e gentil, sempre sorridente, olhos nos olhos, perguntava:
- Posso ajudar?
Poder, podia, mas...
Eu respondia com um sorriso inteiro acompanhado de palavras de ocasião, titubeantes.
Ela, sempre gentil.
Às vezes  comprava  uma  das obras expostas – “Fanga”, de Alves Redol, foi o primeiro de muitos.
Se  a Mariana falasse do tempo que fazia lá fora, ou do single musical em voga, talvez  lhe dissesse  que havia "outros gostos", que nada tinham a ver  com livros, lápis, borrachas, papel cavalinho, aguarelas…
..........
- Posso ajudar?
Sem asas para voar para outras conversas... talvez um lápis da "Viarco", um tubo de "tinta da China", uma folha de cartolina - na Livraria Académica "havia de tudo"! 



domingo, 5 de abril de 2020

Imani Nsambe e eu

Quando o sino da torre da igreja do meu sítio anunciou a meia-noite, e meia dúzia de foguetes poluíram o silêncio, é que dei conta do falecimento do ano velho. Trau, trau, trau - pum! É esta a fala dos foguetes, dos baratinhos, sem “lágrimas coloridas”.
Bolo rei, passas e “champanhe”, abraços e beijinhos, sorrisos e votos de bom ano. Na casa do meu amigo Armando a mesa estava posta - perto da lareira é que se estava bem...
- Vai à nossa e das nossas famílias, chim, chim – tocam-se os copos com a “Raposeira” a borbulhar.
Tinha a esperança de “dois dedos de conversa” - impossível, o telefone não permitia tais mimos, há sempre retardatários, amigos e familiares: bom ano, bom ano, com saúde, digo eu, que é o que mais desejo (…a ver se me faço anunciar em dezembro, daqui a um ano).
Já tarde, em sossego, aproximei-me de Imani Nsambe e aí fiquei, " mãos nas mãos".
Estou a meio da leitura do romance histórico escrito pelo meu amigo Mia Couto, “O Bebedor de Horizontes”. Foi ele, o autor, que me apresentou Imani Nsambe, a narradora dos (…) trágicos acontecimentos do final do reinado de Gaza (…).
Mia Couto “enfeitiça” o leitor com as palavras que escolhe para contar estórias e realça a história do seu (e meu!) povo com a autenticidade dos pormenores recolhidos em múltiplas fontes. A trilogia “As Areias do Imperador”, que termina com “O Bebedor de Horizontes”, é o melhor testemunho do que me vai no pensamento sobre as lendas que escutei aqui e ali, em terras de Inhambane, mais tarde em Gaza, sobre Gungunhana, o rei.
Possivelmente Imani Nsambe é figura de conveniência no romance - que importa? Hoje foi o mote para esta croniqueta de “trazer por casa” depois de um festim com espumante, “sonhos”, “fatias douradas”, “arroz doce” e, a abrir, camarões de Moçambique, possivelmente pescados nas águas de Morrumbene, a norte de Inhambane.
Bayete, Imani Nsambe!


(Ritualmente escrito e publicado no dia 1 de janeiro de 2018)

quarta-feira, 1 de abril de 2020

"O outro lado do tempo"


… Se calhar, “sou de lá”

Num dia como este, com um cravo vermelho na lapela das minhas memórias, em silêncio, regresso ao “outro lado do tempo” - viagem apressada até aos dias do agora: eu, “setentinha”, que o cabelo grisalho acentua sem convencer a “ideia que trago no pensamento”:
- Eu, quarentão… ou um pouco mais…
Pauso no (meu) tempo “trintão” e “regresso” a João Belo, no Xai Xai, e reencontro-me com a terra e as pessoas, odores, sabores, hábitos e costumes.
Volto mais atrás, ao tempo que me viu crescer, de menino a adulto.
- A primeira paixoneta, ainda “visível” na lembrança, na Malhangalene, em Lourenço Marques, a paixão pela prática do futebol no Benfica de “lá”, o colégio, a Casa Vilaça (espécie de universidade onde cultivei conhecimentos sobre a estética do belo…), a Juventude Operária Católica (JOC) e o teatro, o ingresso na Aeronáutica Civil, ser fã indelével da Natércia Barreto e dos seus “Óculos de Sol”, dos grupos “Night Stars”, de L.Marques, “Shadows”, “Beatles” e de tantos outros artistas do top internacional, como Gilbert Bécaud, as matinés no Scala; o serviço militar, de Boane à Maxixe, Inhambane e Vila Cabral, no Niassa, através da prática de experiências jornalísticas nos “Jornais da caserna” “Gazela”, “Kuambone” e a “Voz do 20”, à Ação Psicossocial, como elemento da especialidade IOR (Informações, Operações e Reconhecimento); a colaboração no “Notícias”, de L. Marques, depois no "Diário", a chefia de uma secção administrativa na Fábrica Siesta, em L. Maques, ao Ford Escort 1300 GT, o meu primeiro automóvel...
Num dia como este, com um cravo vermelho na lapela das minhas memórias, em silêncio, “regresso” no tempo a João Belo, onde constitui família, à “Casa Fonseca”, aos torneios de futebol de salão, às praias do Xai Xai, ao Bilene…
O 25 de Abril de 1974 veio ter comigo quando a família crescia: a Carla e o Carlo eram todo o nosso enlevo.
Embora não tivesse nascido em Moçambique, acreditava que “era dali” – aquele país era a minha Pátria!
Num dia como este, com um cravo vermelho na lapela das minhas memórias, em silêncio, recuo ainda mais no tempo, a Portugal - ao tempo da escola primária, no Barril de Alva, do liceu D. João III, em Coimbra, ao Externato Alves Mendes, em Arganil, e ao… Urtigal da minha meninice…
… Se calhar, “sou de lá”, do Urtigal - é o que me diz o tempo.