sábado, 14 de outubro de 2017

Exercício sobre dois búzios (de Sophia de Mello Breyner)

Um acaso devolveu-me à leitura de “Contos Exemplares”, de Sophia de Mello Breyner. O livro, que descobri numa arca no sótão, editado em 1971, tem as folhas amarelecidas pelo tempo – nunca as palavras imortais da autora.
Nesta edição (a quarta), o então Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, assina o prefácio e é pela leitura das páginas que escreveu – mais de cinquenta! – que D. António nos remete para a excelência da obra de Sophia, apontando a sua enorme espiritualidade como referência a ter em conta.
À genialidade do conhecimento de D. António Ferreira Gomes junte-se o talento da maior poetisa portuguesa e ficamos com uma “peça rara” do nosso património cultural.
Qualquer português, minimamente culto, conhece alguma coisa de Sophia de Mello Breyner. Particularmente, creio que “A Viagem” é uma espécie de catecismo pelo facto de dimensionar a esperança de qualquer humano, entre o “Alfa e o Ómega”, até aos limites do quase impossível! Na estória de ficção, além do mais, a autora desenha poesia e poetiza a música das palavras, como sempre fez, com sensibilidade ímpar.
Não admira que a saudade de si, por tudo quanto legou à Humanidade, regresse nas asas do tempo como a excepcional voz da cantora brasileira Maria Bethânia deixa transparecer no álbum “Mar de Sophia”, editado, salvo erro, o ano passado, onde o mar e os seus símbolos, a partir da poesia de Sophia de Mello Breyner, nos transportam para viagens de completo encantamento.
Para meu regalo, a comunhão do belo (as palavras da Sophia na voz da Bethânia) chegou aos meus ouvidos numa tarde calma, bem longe do mar que a poetisa amava como se fosse coisa sua – somente sua! 
Por mim, a “minha serra” sempre foi o lugar perfeito para a poesia que me enche a alma – por vezes descubro  no silêncio oceanos de emoções que nem a morte há-de apagar da memória dos vivos! …
E hei-de “voltar à minha serra”, como a Sophia ao seu mar:
-“Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não passei ao pé do mar”!
Ainda nos “Contos Exemplares”, num deles (Homero) a autora retrata “… um velho louco e vagabundo a quem chamam Búzio…”. Obviamente, o texto mantém o estilo e a arte poética de Sophia..
De novo e sempre o mar:
-”O Búzio era como um monumento manuelino: tudo nele lembrava coisas marítimas…”.
Em Junho passado, depois das férias, conheci outro búzio: “ O Búzio de Cós e outros poemas
” – novas imagens de outros mares que Sophia não precisa mencionar – basta uma simples e bela concha fusiforme e fica perfeito o cenário de Cós, ilha do mar Egeu, onde Sophia comprou o búzio “numa venda junto ao cais…”.
Às suas epopeias, Sophia de Mello Breyner, agrega dois búzios impregnados de simbologia que tocaram a minha sensibilidade: a um faltava o aconchego de uma “concha”: “ O Búzio não possuía nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda que era ele próprio...”; ao outro não ouvia “ … nem o marulho de Cós nem de Egina…”.
Por mais que me deleite nas marés dos seus poemas, fico sem saber quantos mares formam o caleidoscópio da áurea de Sophia de Mello Breyner…

-
Publicado no "Correio da Beira Serra" / 4 de Março de 2008


quarta-feira, 4 de outubro de 2017

"Pinga amores"

A paixão, é dos “livros”, embriaga e deixa-nos tontos, desconcertados nas palavras e nas atitudes - que sei eu sobre os segredos deste nobre sentimento que outros desconheçam? Mesmo nada - é um “mal” que chega sem aviso prévio, instala-se o ”vírus” e pronto…
Já o amor… “O amor é um fogo que arde sem se ver (…)”, na certeza de Camões. Fico-me por este “fogo”, matéria delicada por entender que há vários tipos de amor, e volto à paixão - às minhas paixões; sendo várias, embarco, navego e afundo-me nelas. “Fraqueza” minha, dirão - é verdade, assumo.
Quem me mandou a mim sapateiro tocar rabecão” quando, por exemplo, me “apaixonei” pelo intelecto da Helena, pela elegância das palavras da Helena, pelos incentivos estéticos da Helena, pelo perfume que a Helena usa, pela silhueta da Helena - sim, quem me mandou sonhar o sonho, como se fosse terra de semeadura… 
Citei a Helena, mas podia trazer à prosa a minha “paixão” pelo sorriso único e indiscritível da Ana (dos que dizem coisas, segredos …), pela silhueta da Ana, pelo cheiro da Ana, pela força de viver da Ana, pela disponibilidade do amor da Ana, que a distância quebrou e me deu pena...
Sendo várias, as paixões, em tempos diferentes, embarco, navego e afundo-me nelas. “Fraqueza” minha, dirão - é verdade, assumo. 
Quem me manda a mim apaixonar-me pela aldeia onde nasci, pela “minha” escola”, pela “minha” filarmónica, pelo “meu” rio que mata a sede de nós todos, banha o “meu” Urtigal”, faz mover a roda de alcatruzes no verão e é atração da família “AABA - Autocaravanistas Amigos do Barril de Alva”…
Sim, quem me manda a mim, “pinga amores”, inventar paixões que me embriagam e deixam tonto?


segunda-feira, 2 de outubro de 2017

“Faleceu” a croniqueta despretensiosa

Esta croniqueta, a que me proponho dar  sentido e forma, começou a ser construída no modo solidário e fraterno  quando eu era adolescente em terras  de Moçambique. Agora,  crescido na idade, com mais de setenta primaveras sobre os ombros, frágeis como sempre foram,  e liberto, como estou, dos juramentos de amor à coisa pública, é tempo de retornar ao berço  da leitura de algumas  das obras que fui somando  nas prateleiras,
Havendo liberdade mental para o entretenimento com os livros, em abono da verdade muito bem acompanhado (Miguel Torga, Gabriel Garcia Márquez, Milan Kundera, José Rodrigues dos Santos e outros), basta deixar ao pensamento a decisão suprema de ocupar os dias como muito bem lhe aprouver.
Aqui chegado, ao dia seguinte das eleições autárquicas, em consciência entendo ter cumprido o “destino”, na peugada (de alguns) dos que me antecederam: à aldeia onde nasci deixo alguma coisa de mim, sem memoriais de leituras que, de forma expressa, ou sob disfarce, fossem o reflexo da essência da vaidade.
Diria que esta croniqueta tinha a “morte anunciada” (do título Crónica de uma morte anunciada / Gabriel Garcia Márquez).
Hoje, de motu proprio, lúcida e consciente, ela, a croniqueta,   foi a enterrar  e eu com ela, num sublime e inteligível  ritual.
Quando “falecem” croniquetas despretensiosas com pessoas dentro há rituais assim, de despedida…