quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

"Consoamos aqui os três"


Tenho de reserva 
para os tempos de agora dezenas de livros para ler - alguns, para reler


Quando a minha filha Ivânia, disponibilizou o empréstimo da obra (quase) completa de José Rodrigues dos Santos, agradeci - obrigadinho, mas não; gosto de folhear de preferência os meus livros, somente meus, parceiros de conversas para as conveniências de cada momento. A filhota sorriu, ok pai, entendo – e achou por bem presentear-me com “O Sétimo Selo”, do mesmo autor.
Esta mania/defeito de ser dono das minhas coisas - não das pessoas, que não são coisas, sem dono - faz de mim um minúsculo “ditador”. É por isso que nunca me tornei colecionador de coisa alguma, mas guardo, por exemplo, quantidades apreciáveis de moedas e selos com origem em meio mundo.
Volto ao defeito da posse…
Não recordo como Alves Redol entrou nos meus hábitos de leitura (em 1963 vivia em Moçambique); possivelmente pelo fascínio das palavras do autor quando descreve a (…) odisseia de um camponês que aprendeu a ler (…) no romance “Fanga”. A seguir, no mesmo ano, comprei “A Barca dos Sete Lemes” e fui comprando, comprando…
Alves Redol é, como se vê, um dos meus autores preferidos e velho amigo, por várias razões - uma delas por se ter inspirado (…) na vida de um jovem daqui, Constantino Cara-Linda, meu vizinho e amigo (…).
Quando li “Constantino - Guardador de vacas e de sonhos” nunca imaginei que, um dia, uma das filhas do protagonista da obra faria parte da minha família, o que faz de mim um sujeito honrado e “vaidoso”!
Miguel Torga é mais um autor dos meus gostos, e também pelas referências dos percursos de vida de dois dos seus amigos: Alberto Martins de Carvalho, meu conterrâneo, pedagogo e mestre, a quem fui “recomendado” quando entrei no liceu D. João III, em Coimbra, e Fernando Vale, “aristocrata da esquerda”- exemplo de longevidade na existência sadia e figura de proa no Partido Socialista e no Grande Oriente Lusitano…
A amizade de Torga com Fernando Vale é  conhecida, mas, diz-se, foi Martins de Carvalho quem os apresentou. Pormenor de somenos importância.
Volto ao defeito da posse.
Reli “Os novos Contos da Montanha”, de Miguel Torga - impossível ficar indiferente ao seu “Natal” . Ouso transcrever a “... ceia do Garrinchas”.
Por ser Natal.

“(…) Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia de um patriarca.
- A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José".

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

O pintainho amarelo

“(…)
- Como é que voltas a pôr o ovo lá dentro - disse ela - para o fazeres  sair outra vez? No teu sonho, claro.
 - Não sei, volta a entrar… lá para dentro, e pronto. Suponho eu.
O riso de Lydia é agora um disfarce.
- E que diria o Doutor Freud de uma coisa assim?
 Suspirei de irritação.
 - Nem tudo é….
 Suspiro
- Nem tudo
(…)
- Oh, claro - disse ela - às vezes um pintainho é só um pintainho, a não ser que seja uma galinha (…)”.

Quando a Ângela decidiu lembrar “a amizade, a alegria, o riso, as conversas”, fez agora anos, e presentear o meu aniversário com o “mais belo e melancólico romance de John  Banville”, segundo a opinião do crítico do Sunday Telegraph, não lhe passava pela cabeça que este “Eclipse”- título da capa - dizia de mim o incómodo de alguns dos (meus) segredos,  agora assumidos, que o tempo é de arrumar memórias.
Parágrafo a parágrafo, página a página, tomei assento na estória até dela fazer parte, como se fosse o autor dos “fantasmas” silenciosos que sempre me perseguiram, como sucedeu a Alex Cleave. Este “Eclipse”, na imaginação de John Banville, irlandês, nascido no ano em que eu nasci, tem tanto de mim que dá arrepios – li páginas inteiras “sobre mim”, voltei a ler, pausei a leitura, repeti parágrafos, páginas inteiras - era eu, sou eu “aquilo”, espécie de retrato dos meus medos – de um pequeno medo que fosse: ai se a memória me falha, como aconteceu a Alex Cleave, o ator, a quem aconteceu o vazio da fala à boca do proscénio. Essa foi a causa que o levou de regresso à casa onde nasceu para viver com os “fantasmas que habitavam o mesmo espaço”…

Alex Cleave teve (…) um pintainho amarelo, de celuloide, especado nas  suas patas muito finas  e que punha um ovo quando lhe  premiamos o dorso (…). Lydia estava a olhar para mim com um sorriso incómodo e desdenhoso, mas não inteiramente isento de ternura.
- E como é que se põe lá dentro? - perguntou-me.
- Lá dentro?

Nas minhas memórias de menino há um pintainho amarelo, que punha um ovo quando se premia o dorso.
Coincidência, caro Alex Cleave, aliás: "eu"!