sábado, 11 de janeiro de 2014

À MESA COM O "CUCO RAMBOIA" -"Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos"



Em 1963 vivia em Lourenço Marques, Moçambique.
Com a idade de 18 anos aproximei-me da obra literária de Alves Redol durante uma visita à Livrara Académica com o fito de ganhar o sorriso inteiro da empregada, de nome Mariana, e nada mais do que isso. Infelizmente, apesar de várias  tentativas nunca passou a fronteira do institucional “olá”, seguido da gentileza de frases feitas: “…posso ajudar? …o que deseja?”.
Sem a coragem de outras falas, eu pedia coisas simples: lápis ou borrachas, papel cavalinho ou tinta-da-china; uma vez, ou outra,comprava um livro.
Devo à Mariana a descoberta de Alves Redol.
Comecei pela “Barca dos Sete Lemes”, e tempos depois, “Fanga”. Ainda em 1963, comprei “Barranco de Cegos”, mais tarde “Anúncio”, “ O Muro Branco” e “Gaibéus”.
Retornei a Portugal, Alves Redol “veio comigo”; por cá, estava ausente dos escaparates das livrarias – até um dia, quando dei de caras com “Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos” !
 Li a obra num fôlego.
 Constantino Caralinda - aliás, “Cuco Ramboia”-, mora no Freixial, ”… tem doze anos, mas não deitou muito corpo para a idade. Ainda está a tempo. Um homem cresce até ao fim da vida, se não em altura, pelo menos em obras e ambições…” – relata Alves Redol.
Um dia, tempos atrás, o meu filho Hugo, apresentou a namorada à família: Rita Caralinda!
Vieram as palavras de ocasião, de parte a parte, e uns segundos depois pedi licença para me ausentar; quando regressei, trazia numa das mãos a obra de Alves Redol.
A Rita sorriu, perguntei se  “este” Constantino  era da família, que sim, disse, e acrescentou:
 – É o meu pai, e está vivo, felizmente!

No último Natal, eu, o Hugo e a Rita fomos jantar ao Freixial, à casa do “Cuco Ramboia”.
Para que a emoção fosse acrescida, à mesa, além de outras familiares, estava a irmã Ana Maria - também ela personagem da estória, escrita "...sem qualquer ímpeto de desforço, este contarelo, um tanto biográfico, é obra  de pura devoção" - Alves Redol.

" ...Como já sabemos, o meu amigo  Constantino é Cuco - e Cantigas também.
Todo o povo gosta dele; "é um homem pequeno", diz a gente quando o vê passar na lida; e conta-se, entre sorrisos e olhares  ( da Portela, onde moramos os dois, ao Alto, que fica junto à estrada, ou ao Rossio e às Ermidas, cá em baixo,  quando se busca a saída para Bucelas), certa conversa a que o Constantino deu andamento..."
Alves Redol

domingo, 5 de janeiro de 2014

Eusébio: Bayete, irmão!


...deram-me umas botas com travessas,  calções quase brancos e uma camisola de um vermelho desbotado. A camisola, mesmo assim, tinha o símbolo da águia...

Acordei cedo, como se fosse segunda feira. Na dúvida, confirmei no "Lumia"  - é domingo!
Já agora, pensei, vou saber das notícias do país:
- Morreu  Eusébio!
Se havia vontade de voltar ao sono, esqueci. Desliguei a luz, aconcheguei-me nos lençóis, e por aí fiquei, às voltas  com as minhas memórias de mufana, em Lourenço Marques, residente no bairro da Malhangalene.
Mufana sim, pontapés na bola, à fugida, junto à Praça de Touros; mais toques na bola no  campo do 1º de Maio, perto de casa, que equipava de vermelho.
Um dia descobri o melhor modo de ir para o outro lado da cidade, onde o Sport Lourenço Marques e Benfica tinha o seu campo relvado, com pista de ciclismo à volta.!
Fui, deram-me umas botas com travessas,  calções quase brancos e uma camisola de um vermelho desbotado. A camisola, mesmo assim, tinha o símbolo da águia...
No fim do treino, pediram-me para voltar no  seguinte.
Aspirantes  à equipa de júniores, mais de sessenta!
Ao segundo dia de testes e experiências: ("jogas em  que lugar"?; "vais mas é  ali para trás, para defesa"; " em cima dele, vai lá, não passa, não passa"; "ó puto, cobre em cima, encosta-o à linha..." ) fui um dos escolhidos para  ser inscrito no clube.
Por engano, deixei de ser Ramos, e passei a ter "Santos" no nome! Coisas, miudezas, enfim - o que eu queria mesmo era jogar a  sério com a camisola do meu Benfica!
Nesse tempo já o Eusébio tinha fama.
Lembro-me de  ter assistido aos jogos da equipa brasileira Ferroviária de Araraquara  com a  seleção de Moçambique, seleção dos Naturais de Moçambique e Sporting de Lourenço Marques. O Eusébio jogou em todas as formações..
No primeiro jogo, um jogador brasileiro surpreendeu com uma finta "nunca vista": corria com a bola, quando o adversário se aproximava, fazia com que esta lhe passasse por cima!
No jogo seguinte, dias depois, o Eusébio brindou o público com jogadas semelhantes, fintas doidas, tiros fora da área...
Nesse tempo, às vezes, a equipa de juniores do meu Benfica, à noite,  ia treinar com a equipa do Sporting, no seu campo. 
...O mais certo foi o  Eusébio ter feito de mim "gato sapato" quando, como defesa direito, procurava suster as suas cavalgadas com o brio que se exigia a um atleta do Benfica!...
As minhas memórias, agora, estão tão vivas e presentes, como se tudo tivesse acontecido ontem.
"Tenho" quinze, dezasseis anos...

Esta manhã, sou um dos muitos portugueses pelo nascimento,  moçambicano pelo amor à  Pátria de adoção, que deixou correr as lágrimas ao saber que...
- O Eusébio morreu!
Bayete, irmão!


sábado, 4 de janeiro de 2014

"...Mandei-lhe um cartão..."


É tempo de inverno. Prendo-me ao calor da lareira, toco nas ausências a quem quero  bem, construo atalhos pelos caminhos da saudade - fixo-me neles. A culpa é do Vitor Silva pela sua  viagem no tempo...
Volto ao "Namoro" da poesia de Viriato da Cruz, poeta angolano, como Fausto, o caminheiro da melodia.


Mandei-lhe uma carta
em papel perfumado
e com letra bonita
dizia ela tinha
um sorriso luminoso
tão triste e gaiato
como o sol de Novembro
brincando de artista
nas acácias floridas
na fímbria do mar
Sua pele macia
era suma-uma
sua pele macias
cheirando a rosas
seus seios laranja
laranja do Loge
eu mandei-lhe essa carta
e ela disse que não
Mandei-lhe um cartão
que o amigo maninho tipografou
'por ti sofre o meu coração'
num canto 'sim'
noutro canto 'não'
e ela o canto do 'não'
dobrou
Mandei-lhe um recado
pela Zefa do sete
pedindo e rogando
de joelhos no chão
pela Sra do Cabo,
pela Sta Efigénia
me desse a ventura
do seu namoro
e ela disse que não
Mandei à Vó Xica,
quimbanda de fama
a areia da marca
que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço
bem forte e seguro
e dele nascesse
um amor como o meu
e o feitiço falhou
Andei barbado,
sujo e descalço
como um monangamba
procuraram por mim
não viu ai não viu ai
não viu Benjamim
e perdido me deram
no morro da Samba
Para me distrair
levaram-me ao baile
do Sr. Januário,
mas ela lá estava
num canto a rir,
contando o meu caso
às moças mais lindas
do bairro operário
Tocaram a rumba
e dancei com ela
e num passo maluco
voamos na sala
qual uma estrela
riscando o céu
e a malta gritou
'Aí Benjamim'
Olhei-a nos olhos
sorriu para mim
pedi-lhe um beijo
lá lá lá lá lá
lá lá lá lá lá
E ela disse que sim